A minha educação na escola primária foi terrível. Aos seis
anos entrei para a escola da professora Laurinda, uma senhora de quarentas,
natural de uma aldeia no distrito da Guarda. Falava esquisito, com uma profusão
de iiiis e rrrrrs que muitos anos mais tarde vim a identificar como pronúncia
do norte. A dificuldade eram os ditados em que a senhora dizia “bino” em vez de
vinho e o pessoal ainda verde nestas coisas da linguagem escrita ia atrás do
que ouvia e estava literalmente feito. Eram duas reguadas em casa mão por cada
erro cometido que se traduzia em mãos quase em sangue em muitos putos que
tinham o ouvido mais afinado e escreviam tal qual a professora Laurinda
pronunciava.
A profª Dona Laurinda, como fazia questão de ser chamada,
tinha umas bochechas encarnadas sob uma pele branquíssima e uns olhos
pequeninos de redondos que saiam das órbitas em delírio a cada estalar da
madeira na pele delicada das mãos dos infantes. Recordei durante muitas noites
de pavor o som oco da régua e os dedos da professora a esmagar os dedos esguios
da miudagem com uma firmeza superior ao necessário. Aquilo era um massacre autêntico
de uma sádica selvajaria.
Com ar afanado de
catequista, caminhava a Profª Laurinda pelos corredores labirínticos do edifício
antigo da escola com as chaves a tilintar a cada passada. Os miúdos cagavam-se
de medo cada vez que ouviam o som característicos do tilintar do metal contra
metal e ficavam num silêncio absoluto de olhos postos nos próprios sapatos. Até
que ela passava e todos desatávamos a rir com um nervoso miudinho que em alguns
se prolongaria pela idade adulta. Não se podia correr no recreio, nem gritar,
nem fazer nada daquilo que é suposto fazer-se na infância.
Essa repressão que durava das 8h às 13h gerava
comportamentos absolutamente insanos em alguns de nós. Assim que tocava a saída, como touros largados
do curral, os putos desatavam a correr, a brigar uns com os outros e a gritar
que nem loucos. Fazíamos grandes asneiras ingénuas no tempo que decorria da
escola a casa: tocávamos a todas as campainhas das portas para depois fugirmos
desenfreadamente, dávamos pontapés nos gordos a roubar-lhes as mochilas
espalhando os cadernos e os livros pelas ruas, os gaiatos com fisgas acertavam
nas pernas das raparigas de bata branca e saias curtas e demais atos de
rebeldia de feras reprimidas durante horas.
Um dia a coisa tinha que se dar. Entrei na 2ª classe com
distinção mas tinha a Professora Laurinda atravessada como uma espinha na
garganta. Por natureza dava-me para ficar sempre do lado dos mais fracos e
ineptos. Fazia-o por instinto e não por qualquer sentido particular de justiça.
Não conseguia ser alheia aos horrores por que passavam muitos dos meus colegas
que chegavam a adoecer mesmo para não virem à escola. Passei todas as férias de
verão a delinear uma estratégia para ser eu desta vez a dar uma lição à sádica
da professora. Nesse tempo as férias duravam 3 longos meses pelo que tive muito
tempo para me preparar.
Sempre tive um ótimo ouvido e conseguia imitar o que quer
que fosse, sobretudo vozes e … pronuncias. Não me foi pois difícil apanhar o
sotaque beirão. A pretexto de uma experiência qualquer pedi à professora para
gravar umas aulas de português numa cassete de fita que era a única coisa que
havia para gravar nesse tempo. Como era muito boa aluna e sempre cheia de
ideias a professora concordou sem desconfiar de nada. Escusado será dizer que
passei o verão todo a treinar o sotaque beirão.
Chegou o dia da leitura da composição que tínhamos feito
durante as férias. Ofereci-me logo para ler o que tinha previamente ensaiado
com a devida pronúncia. A professora lançou um sorriso seco, apreciando o meu
ato voluntário de masoquismo. Acrescento que tinha realmente jeito para ler e
uma boa voz nítida e de tom alto. Subi ao estrado em frente do quadro e virada
para a classe comecei:
“ O Karu do mei irremão
avariou na istrada. Ele tinha saído muito sedu (cedo) de Kaja (casa) e ficou
muito aborrecido. O abô (avô) tinha-lhe pedido para ele levar bino (vinho) e
cerbeja da taverna. O meu irremão rodou a tchave e nada aconteceu. Estávamos perto
do conbeto e fomos beber auga à fonte ao pé de um carbalho ainda piquenino.” (Resta
acrescentar que consegui fazer quele vibração da garganta típica da pronuncia
beirã).
Parei para respirar e entreolhar a professora Laurinda na
tentativa de avaliar os riscos que corria e se tinha que largar a fugir pela
janela caso fosse necessário para proteção da minha vida. A minha pausa foi o
pretexto certo para que os risos contidos dos meus colegas rompessem hilariantes
pela sala de aula. Não havia ameaça ou reguada que parasse aquela incontinência
de gargalhadas puras e duras. Meses e meses de contenção, de emoções
reprimidas, de ralhetes e castigos injustos, de rude seriedade imposta por
medo, de dor e raiva em fatias de ódio pequenino contra o despotismo da
educadora, ali anuladas pela minha voz plena de sotaque beirão. Batiam-se os
pés, atiravam-se canetas e folhas ao ar, uma autêntica rebelião, o caos
instalado na inocência de ainda ignorarem o grau de malvadez de que são capazes
os crescidos.
Olhei a medo para a D. Laurinda que apanhada de surpresa,
ainda não recuperada, tinha as bochechas a pegar fogo. Não esperei mais, corri
e corri e corri pelos corredores, pelo pátio, saltei o portão. Fugi. Choviam
rios. Encharcada cheguei a casa da minha avó. Corri para os braços dela.
Desatei a chorar e a rir ao mesmo tempo.
- Oh! Avó devias ter visto as bochechas da professora
Laurinda, estavam em brasa. Ela fumegava tanto que se abrisse a boca cuspiria
fogo.
À luz de agora até pode parecer que esta foi uma partida
inocente e minúscula face ao que aquela professora nos fazia passar. Mas,
quando se tem sete anos e se desafia um professor tão temido que nos punha a
tremer que nem varas verdes só de olhar para nós e nos chamar pelo nome, isto
foi uma coisa gigantesca, com algo de super-herói inconsciente no meio.
Não sei se foi a humilhação que a fez cair do pedestal, se
ficou realmente doente, um facto é que a professora meteu baixa médica a seguir
a essa manhã fatídica e não mais apareceu à escola. Ninguém sofreu represálias
e eu compreendi pela primeira vez que os mais temíveis e cruéis dos seres são
pessoas frágeis que não suportam o confronto e a humilhação pelos que
consideram fracos e desprezíveis. Ninguém é o que parece foi a minha lição de
vida.
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