A Intrusa
Tinha por hábito
espreitar o mundo dos outros como se visse televisão. Não era tanto a
curiosidade que a movia, mas, antes uma sede incrível de drama, poesia e alguma
rara comédia. A conclusão era evidente: a sua vida oca e incrivelmente igual,
dia após dia, assemelhava-se à das velhas vizinhas que tudo dão conta por
detrás das cortinas das janelas. A vida estava presa dentro dela e ela
prisioneira dessa vida e no ato de espreitar encontrava os argumentos que era
incapaz de imaginar por si. Tinha um enorme deficit de imaginação e a
capacidade inventiva de uma pedra sem erosão.
A vida dos outros era a sua única distração e escrevia depois com pormenor e precisão todos os episódios que entrevia de buracos de fechadura, cortinas entreabertas e tudo o mais que lhe permitia ver escondida, anónima, invisível, por detrás da Rede. Grossos volumes de diários do alheio acumulavam-se no chão do quarto, faziam as vezes de mesa, de cadeiras, de suporte de candeeiros… a mobília de folhas e folhas escritas à mão sobre vidas…
Contudo, não era uma voyeur no sentido clássico. Não procurava desejo nem excitação, mas, uma espécie de oxigénio que alimentava a respiração dos seus dias monótonos. Nunca fora descoberta. Elevara a arte de espreitar a uma ciência. Até que um dia…
Acordou, espreguiçou-se como sempre fazia e deu vida ao corpo algo trôpego pelas muitas horas sentada. Não tinha planos, simplesmente entrava na Rede sem destino, até encontrar uma fissura na intimidade dos outros. Dirigia-se para essa abertura inusitada com calma sofreguidão e espreitava. Tornara-se uma especialista em espionagem intima, uma sofisticada paparazzi que em vez de fotografias, roubava almas sem pudor nem pena. Jamais fazia apreciações de valor sobre os segredos a que tinha acesso ou denunciava os atos mesmo que ilegais ou imorais.
Podia mesmo dizer-se que toda a atividade cerebral se fundava na amoralidade. Os adjetivos estavam abolidos dos seus relatos.
Raramente regressava ao mesmo lugar duas vezes, talvez por isso nunca fora apanhada. Mas, arriscava bastante, chegava-se perto, o mais perto que podia para escutar e assim contextualizar a história. Mas, naquele dia…
Decidira voltar… duas vezes e agora uma terceira que se transformaria rapidamente em muitas mais.
Acontecera encontrar alguém que a obcecara, apesar de saber que esse era o primeiro erro a evitar a todo o custo. Desta vez não conseguiu fugir, ainda que soubesse de antemão que o risco de ser apanhada era elevadíssimo. Entrava no quarto através da Rede e escondia-se onde podia. Aquela pessoa era apaixonante! E porquê?
O que é que tornava aquela pessoa diferente das outras? Ela não conseguia responder. A sua voz interior bem a avisava para se afastar, mas, tal como os viciados são pródigos em arranjar argumentos para continuarem a alimentar o vicio, o seu cérebro não se cansava de produzir antídotos para os avisos interiores. Havia um pássaro…
… Que na gaiola de pé alto produzia sons desafinados, nada habituais nos pássaros que cantam naturalmente afinados com o universo. Talvez fosse esse pássaro…
… Pronúncio de uma
história diferente de todas as que antes espreitara. Havia uma mulher de pele
leitosa sobre uma coberta de crochet e um quadro ao fundo com uma paisagem
paradisíaca de palmeiras e outros lugares comuns. A mulher devia estar doente
porque raramente se levantava da cama para se sentar numa cadeira de baloiço
antiga. Lia muito e recebia algumas visitas de outros pássaros, não sabia se vinham
visitar a mulher de pele quase transparente ou o pássaro aprisionado que não
sabia cantar.
Um homem vinha trazer-lhe comida, jornais e mais livros. Por vezes limpava o quarto, mudava as flores silvestres da jarra em cima da escrevaninha e levava a roupa suja dentro de um saco do lixo. Não trocavam mais do que duas frases e um sorriso fortuito. Uma vez por semana vinha uma enfermeira e um fisioterapeuta e juntos trabalhavam o corpo da mulher em movimentos de flexibilidade e alongamentos. Mas, havia só uma pessoa que tratava do pássaro desafinado…
Era um adolescente vestido de borboleta como se tivesse acabado de sair de uma peça de teatro da escola ou de um corso carnavalesco. Não tinha mais de 12 ou 13 anos e tinha uns olhos incrivelmente azuis. Mas, o que os tornava tão irreais era a menina do olho ser branca como se de dois pedaços de nuvem se tratasse. Ela nunca tinha visto nada assim. O menino não era cego, mas, os seus movimentos eram de uma leveza incrível como se os pés fossem asas deficientes que não conseguissem voar mais alto que a superfície do chão. Vinha todos os dias logo pela manhã, falava com o pássaro numa linguagem que mais parecia um dialeto raro, dava-lhe alpista e mudava a água do bebedouro. Fazia cócegas na barriga do pássaro enquanto lhe falava em tom aveludado. Dócil o pássaro deixava-o acariciar as penas coloridas sem qualquer temor. Até que o pássaro levantava voo e entrava dentro do céu que eram os olhos do menino, como se só aí ganhasse sentido como pássaro e pudesse cantar afinado porque era livre.
Fora estas visitas rotineiras ninguém mais assomava aquele quarto fechado em que ela tropeçou por acaso. Passou a ter que espreita-lo todos os dias com a urgência dos viciados.
No tempo em que a vida passou a ter reencarnações infinitas a engravidar o virtual, deixámos de poder confiar nos sentidos, afastámo-nos cada vez mais dos primários instintos, passámos a ser algo demasiado sofisticado e inominável.
Aquele quarto podia nem existir, nada era garantido, nem tudo o que fosse visto ou ouvido era real. A dúvida confundia as mentes menos aptas a viver o tempo em que nos agarramos ao invisível mas sem a força da fé.
Por vezes ela tropeçava na dúvida da própria existência. Há anos que não falava com ninguém, não acariciava o calor morno de outra pele, não era tocada por outrem. Um abraço, um beijo, um olhar dentro do seu, eram gestos perdidos cuja memória deixava um rasto tímido rumo ao buraco negro do passado.
Só tinha uma opção: fazer algo que nenhum ser inteligente jamais pensaria sequer admitir como probabilidade; Escrever em folhas de papel aquilo que observava e ouvia. Produzir livros físicos como o faziam os antigos, com as notas dos seus sentidos, omitindo as emoções. Só factos puros como tijolos que erguem o edifício sólido de uma realidade imutável. Disfarçados de móveis, os diários grossíssimos iam construindo aquilo que há muito se negava: um mundo fora dos cérebros acéfalos da Rede.
O vício do quarto habitado pela mulher leitosa, do pássaro desafinado e do menino-borboleta poria fim a esse seu mundo e ela sabia-o. Deixou de escrever, atreveu-se a desejar que aquele quarto existisse para além da Rede. Deixou de espreitar, deixou as emoções aflorarem ao seu corpo como um vendaval que começa num sopro.
Nesse dia ela acordou agitada. Esperou que os primeiros raios da manhã a viessem salvar das dores noturnas, mas, não teve sorte. Decidiu que não passaria de hoje, iria revelar-se, deixar-se-ia apanhar, a intrusa no mundo real por quem ela se apaixonou.
Entrou na Rede, teclou ansiosamente a password, apagou o seu perfil e saiu, talvez para sempre.
A rua estava deserta aquela hora. Eram cada vez menos os que saiam do conforto da Rede no ambiente seguro de suas casas. Após o primeiro impacto do desconhecido seguiu caminho guiando-se pelo som agudo do pássaro desafinado.
Começou a ouvir o canto desafinado do pássaro a aproximar-se. Sentiu o ar cortante e frio de um olhar a trespassá-la, um prenúncio de voo raso de uma borboleta que a ensurdeceu.
Estava tão desorientada como insetos a perseguir uma luz errante. Os olhos ao saírem da luz artificial em que viviam há anos, ficaram de imediato feridos por aquela claridade real que a cegava como bolo de fogo. Todos os sons mínimos que fossem eram captados na sua real frequência que a ensurdecia até ao grito.
Procurou proteção nas nuvens ensimesmadas pelo céu mais azul que alguma vez vira. OS olhos admirados do rapaz acolheram-na interrogativamente:
- Quem és tu?
- Sou a intrusa.
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