Tenho-me dado conta que partes das
minhas obsessões com comida foram culpa direta da minha avó. O que para mim
representa de imediato uma contradição, uma vez que a minha avó era devota de
uma vida livre de excessos e da gula (não no sentido católico de pecado mortal,
mas, como uma vergonha mortal face à escassez que (já) naquele tempo imperava
no país para a maioria da população. Não que ela considerasse o hedonismo a autoestrada
para a danação do Inferno, pelo contrário, ela ensinou-me que o verdadeiro
pecado era desperdiçar as coisas boas da vida quando estas se nos apresentassem
à frente, mas, tinha uma noção incrível do equilíbrio e bom senso. Por isso, a
minha avó dedicou grande parte da sua vida a um empreendimento cujo sucesso não
dependia em nada de si própria – tornar-me uma boa pessoa - e ao mesmo tempo ia-me
mostrando a vida em todo o seu esplendor, onde se incluía o culinário.
Imaginem um ser que nascesse de
uma mistura dos genes da finança como ciência exata de Oliveira Salazar, da
noção de grandeza como filosofia absoluta de Napoleão Bonaparte e da ingenuidade social de Jean-Jacques
Rousseau e cuja mãe fosse Isabel I de Castela com o seu pulso de ferro e
sageza, e terão uma ideia bastante aproximada de quem foi a minha avó. A mulher
que mais liberdade mental me deu e mais me restringiu o meu comportamento
obsessivo-compulsivo e, simultaneamente, me mostrou a beleza de um pão alentejano
acabado de sair do forno cujas fatias barrava com banha de porco caseira e
polvilhava de açúcar amarelo. Foi ela a inventora do conceito “Impossible is
Nothing” (O impossível não existe senão na tua cabeça, oh neta!) e que a Nike,
anos mais tarde, roubaria, descaradamente. Tinha uma saúde de ferro que tratava
a café e um cálice de anis quando se sentia mais cansada, num tempo em que
conceitos como colesterol e tensão arterial ainda não tinham sido inventados
para o povo. Gorduras, açúcar, pão e comida condimentada eram a minha dieta
desde tenra idade. Juro que perante os condimentos picantes feitos pela minha
avó, a gastronomia indiana e mexicana é um doce tormento, e ela inventava
aquilo tudo com especiarias de misteriosa proveniência, pois, a comida
alentejana desconhecia ainda a mão molecular da minha avó.
Cozidos e grelhados eram para ela
comida hardcore e uma falta de respeito para com Deus que nos criou com o
paladar requintado e o elegeu como um dos 5 sentidos ao dispor da humanidade. Por
isso, mal tive o primeiro dente, fui logo sendo apresentada aos seus sabores
fortes e temperos quentes. Ao doce misturado com salgado, ao apimentado que
travava com o amargo do cacau e a outras misturas improváveis que me definiram
como pessoa até hoje. Lembro-me de quando vim estudar para Lisboa e arranjei o
meu primeiro emprego, ter ido com a minha patroa pela primeira vez a um
restaurante clandestino, à porta fechada, na Rua da Rosa. Tudo aquilo era muito
misterioso e as pessoas que nos serviram, em mesas baixinhas e nós sentadas em
almofadas, de olhos rasgados e vénias por nada e por tudo, iam trazendo
pratinhos de comida indefinível e na maioria crua. A minha patroa olhava para
mim com curiosidade e depois com um grande espanto que já não conseguia
esconder, apesar de ser uma pessoa bastante fleumática à maneira inglesa. Como
é que uma pessoa como eu, vinda dos confins da província, lidava tão bem com
todas aquelas novidades alimentares? Vim a saber mais tarde que tinha ido ao
meu primeiro restaurante japonês que eram completamente desconhecidos no eixo
Lisboa-Cascais e que só cerca de 20 anos mais tarde é que viriam a conhecer a
luz do dia na capital e 30 anos mais tarde se tornariam moda e fast food. Claro
que a Ana Salazar nunca tinha sido iniciada pela gastronomia típica da minha
avó Maria Antónia e que à beira daquelas japonisses era uma espécie avançada de
comida experimental molecular. Não que a minha avó andasse em volta de tubos de
ensaio em que líquidos de todas as cores borbulham e deitam uma espécie de fumo
branco, nem que ela soubesse alguma vez o que era uma mousse de salmão com
reduzido de pêra rocha. Mas, estou completamente convencida que foi a minha avó
que inventou o sushi quando um dia me abrigou a comer cação crú envolto em
arroz para disfarçar o gosto e que ela assegurava tratar todo o tipo de
problemas de estômago e vesicula.
Hoje, nada me faz confusão, sou
uma pessoa aberta a todo o tipo de experiências desde que não me obriguem a
participar nelas se para tal não estiver para ai virada, raras são as coisas
que me chocam e ainda considero intacta a minha capacidade de me espantar. Em
resumo, graças às experiências alimentares da minha avó, sou uma “open mind”
para quem o impossível é nada e nada é impossível. As lições gastronómicas da
minha avó não me fizeram uma grande cozinheira (nem sequer pequena ou minúscula),
mas, prepararam-me como ninguém para a vida e para apreciar as coisas boas, as
novidades e as mudanças. E com isto posso dizer, afinal, que a grande empresa
que a minha avó se propôs a fazer ao longo da sua vida – educar-me – foi um
verdadeiro sucesso. Não sei se sou aquela boa pessoa que ela queria, mas, sem
dúvida que sou tolerante para com a diferença e absolutamente intolerante para
a estupidez de quem não experimenta por medo, de quem não muda por acomodação,
de quem é ignorante por opção. E claro com as minhas obsessões alimentares
induzidas e refreadas pela mão firme de Maria Antónia.
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