“Então e a namorada?”O solteirão encolhe os ombros e
recolhe os olhares invejosos dos homens casados da família “Ah! Campeão” e os
de comiseração “Coitadinho” das tias e cunhadas. Entrega a garrafa de vinho ao
irmão e coloca as mãos nos bolsos enquanto sorri para as sobrinhas de telemóvel
apontado como arma ameaçadora “ Não me chateie!”.
A doença grave da tia Alva desvia as atenções do solteirão
que se senta no sofá ao lado do sobrinho Ivan, cuja playstation atua como sedativo,
a única forma de o tornar menos terrível. ““Não lhe digas nada. Deixa-o estar que
está calado e quieto” como se esse fosse o único sonho da mãe e não ter um
filho educado e sociável.
“ Então já estamos todos?” grita a avó da cozinha enquanto
limpa as mãos ao avental e arruma o cabelo em carrapiço. Ninguém fala da Ruby.
A filha mais velha da Analdina é assunto tabu nas reuniões de família. “ Quero
ficar ao lado da Ruby” grita em início de birra o Ivan, atirando a playstation
para o tapete. “A Ruby só vem mais tarde. Ficas ao lado da Leonor”. “Não quero.
A Leonor é feia e uma chata”, volta a gritar o reizinho e a mãe corre a tentar
prevenir o esboço de uma monumental birra. “Se calhar é melhor darmos os
presentes aos miúdos antes do jantar” sugere uma das tias que já está a ver
a paz da refeição ameaçada. “ Nem pensar. Nesta casa cumprem-se as tradições”
exclama o avô, o maldisposto.
Voltam a bater à porta. “É a Ruby!” grita o reizinho Ivan
correndo para a porta. Todos se entreolham e a avó dirige-se para abrir a
porta. Entra uma adolescente com cabelo azul e um piercing no nariz, seguida de
um rapaz vestido de cabedal dos pés á cabeça. “Este é o Tralhas!”. “Sejam bem-vindos
meus amores” exclama a avó na tentativa diplomática de quebrar a frieza de Pólo
Norte apesar da acolhedora lareira. Trouxemos uma garrafa de vodka e a mãe do
Tralhas fez um bolo de agrião. Ela é vegan.” Explicou a miúda tirando o
cachecol e ignorando os olhares trombudos dos restantes convivas.
O Ivan nunca mais saiu do lado da prima e do namorado “Bué
da fixe” apontou o miúdo com o dedo na tatuagem- revólver no pescoço do
adolescente. A mãe do reizinho revirou os olhos ao marido que estava prestes a
dizer algo menos conveniente. “É só um jantar, Tónio. Logo eles vão embora”.
O telefone fixo tocou. Ninguém sabia onde estava o telefone.
Todos de repente se mostraram muito disponíveis para o jogo da caça ao tesouro.
O telefone continuava a tocar. A avó lá conseguiu achar o barulhento e
inesperado mecanismo. Os mais novos olhavam intrigados para aquele telemóvel
gigante. “É a Lena da Alemanha!” gritou a avó delirante. Todos prestaram atenção,
até a criançada acalmou. “ A única da família que valia alguma coisa e foi-se
embora” rangeu o avô entre dentes. “ A
Lena e o marido mandam muitos beijinhos. E prometem que para o ano vêm cá
visitar-nos.” “Está tudo a correr bem com eles?” “ Parece que sim. Depois de se
ambientarem é tudo mais fácil.”
A Ruby pareceu interessada numa moldura na estante e chamou
a atenção do Tralhas. Era uma foto dela no primeiro dia de escola “Cool”
exclamou o Tralhas, mais preocupado com a comida que tardava a chegar. O tio
solteirão cujo infortúnio de não ter namorada foi abafado pela entrada
dramática de Ruby, perguntou “ E o jantar?”. “O bacalhau está a sair já, já”
respondeu a avó. “Mas, o Tralhas é vegetariano!” “ Como? Não come bacalhau?” “
O bacalhau não é carne” “ Na verdade nem peixe”. “ Oh, prima, os vegetarianos
não comem é animais”. “ Dá-lhe o bolo de agrião da mãe” resmungou o avô.
O Tralhas que estava
a ver o seu jantar em risco apressou-se a esclarecer que vegetariana
era a mãe. Ele até ia ao MacDonalds e interessava-se pelas ideias da extrema
direita. O avô levantou-se da mesa e agarrou o braço do miúdo “Rua, rua, põe-te
daqui para fora. À minha mesa não se sentam nazis. Os meus bisavós eram judeus
da Polónia, seu sacaninha.”
“Avô acalme-se que ainda tem um achaque”. “Fora da minha
vista Nazizinho de trazer por casa”. “Avô mais respeito pelos meus amigos.” “E
tu miúda vai tirar os macacos do nariz e toma banho”. “Não são macacos pai, é
um piercing” “Quero lá saber. Fora daqui.”. O Tralhas viu definitivamente o
jantar a ir para a alheta. Ruby vestiu o casaco e apressou-se a empurrar o
miúdo que ainda estava um bocado baralhado. “ Anda Tralhas a minha família cheira
mal. Já te tinha dito mas não acreditaste.” “E agora onde é que vamos jantar? A
minha mãe vai passar a noite no retiro da paz” “ Eu quero a Ruby” gritava de
raiva, Ivan o Terrível. “ Se formos a correr ainda apanhamos a sopa dos sem
abrigo, ali na Estrela”. “Ninguém vai a lado nenhum.” Impôs a avó. “Sentem-se
todos à mesa já”. A matriarca transformou-se em general e ninguém se atreveu a
contrariar a ordem.
O jantar decorreu em silêncio. Todos tinham saudades da Lena
e do marido. Sobretudo, porque não estavam lá. Ivan ensaiou uma nova pré-birra
quando o obrigaram a não usar a playstation à mesa. As primas contudo usaram o
telemóvel à vontade. Ruby disse que não era justo que uns pudessem fazer o que
lhes dava na real gana e outros tinham que obedecer a supostas regras ditadas
pela minoria. Todos olharam para ela e lembraram-se da mãe falecida de overdose
tinha a miúda 2 anos. O pai deu á sola e ninguém mais lhe pôs a vista em cima...
Agora a filha tinha-lhe herdado o jeito para defender os indefesos. Não lhe
auguravam bom futuro.
Tosses discretas, e o marulhar das colheres no arroz doce. O
jantar de Natal estava quase acabado. A Missa do Galo era o episódio seguinte. “Achas
que a Mariazinha vai ter o atrevimento de ir à Missa?”. “ Porquê, se Deus lhe
perdoou !” “ Mas, ela traiu o marido e quebrou os votos do casamento!”. “É por
isso que não me caso” ripostou o tio enquanto assumia a pose de gay disfarçado
de solteirão.
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