“Somos tão mais verdadeiros quanto mais nos parecemos com aquilo que sonhamos ser”
In “Todo Sobre Mi Madre" (Agrado) de Pedro Almodovar
Tenho este vício, ou direi trauma, de andar constantemente a refazer os sonhos como se eles fossem uma cama desfeita todas as manhãs, lençóis por esticar, edredão por endireitar, almofadas aconchegadas e eis que o sonho velho surge recauchutado. Desta vez acrescentei uma vírgula à família de sonho que amo, o Tché, um labrador bebe todo preto azulado. Foi uma prenda de aniversário adiantada. Tenho por mim que quanto mais amamos os outros mais somos capazes de nos amar a nós próprios, e a boa noticia é que não há plafond máximo para o amor.
Saí de casa com um sorriso pendurado na cruzeta do olhar...
Sorrir com os lábios é fácil e pode ser enganador, mas, com os olhos não há como inventar a não ser que se seja uma actriz fabulosa e mesmo essas desconfio que no calor da cena sentem mesmo o que fingem sentir. Gosto do caminho que percorro até ao trabalho. Sou uma privilegiada porque levo sempre o mar comigo lado a lado durante a curta viagem que dura 30 minutos. O mar é a coisa que mais se parece comigo, sempre tive esta sensação. Tem dias em que parece um espelho infinito caído por terra para melhor reflectir o que se passa lá em cima no céu, outros dias o espelho parte-se, revoltasse contra o mundo, contorce-se e espraia-se para além dos limites que nenhum obstáculo contem. Revejo-me bastante nesta bipolaridade do mar e também no seu mistério, ora silencioso ora ensurdecedor, ora Zen ora vivo e animado, revoltoso até. Não há dois dias iguais para quem observa o mar como eu o faço todas as manhãs.
Amanhã faço 47 anos e assaltam-me emoções ambíguas...
Por um lado, continuo com aquela alegria de menina pequena que se acha imortal e cujo dia de anos é o ponto Everest do ano. Por outro lado, pergunto-me como é que cheguei já aqui tão perto da fronteira dos 50? Cliché à parte, a vida é um momento que passa enquanto fazemos planos, refazemos os sonhos e dormimos. Aqui o melhor e o pior juntam-se à esquina a tocar concertina e a cantar o solidó! O melhor é aquilo que aprendi com 47 anos de experimentação, erro, repetição e aprendizagem. O pior é que o tempo é um tirano que não conhece o perdão nem a clemência, e vai fazendo estragos físicos e psicológicos por onde passa. Rabo e mamas à parte, olhos que precisam do braço esticado para ler as miudinhas das instruções, memória que tende a fixar-se melhor num episódio de há vinte anos atrás do que no que comi ao almoço, um facto é que me sinto melhor do que naquela foto em casa dos pais quando tinha 27 anos. Mas, isso deve ser da roupa e do penteado antigos que sempre nos parecem horríveis e de um mau gosto atroz.
Aprendi sobretudo que a forma como os outros nos tratam tem tudo a ver com a nossa atitude para connosco próprios. E para gostarmos de nós temos que primeiro gostar dos outros. Esta premissa parece fácil agora, mas, foram precisas quatro dezenas de anos de vivencias, desencantos, amores e desamores para perceber isso. Essa é a vantagem de se chegar aos 47! Irmos compreendendo finalmente o mecanismo complicado das relações e o puzzle de milhões de peças da palavra sentimento, e ao mesmo tempo ainda não sentirmos que estamos a decrescer nas nossas faculdades físicas e mentais.
Estacionei o carro e fui tomar o meu galão enquanto deito uma olhadela rápida aos títulos do Diário de Noticias, antes de começar definitivamente o meu dia de trabalho. Hoje o sonho que recuperei do meu catálogo de sonhos é absolutamente vintage. O meu sonho tem só a ver comigo e como estou prestes a fazer anos julgo que me é permitida esta atitude mais egoísta. Portanto, o sonho que hoje carrego comigo e ao qual estiquei os lençóis e compus as almofadas, é o sonho de por um dia voltar a ser impulsiva, espontânea, criativa, inconsequente, doce, sensível… numa palavra livre. Mas, tenho quase 47 anos e sei bem que a verdadeira liberdade vem agarrada a tanta e tanta tralha que é impossível exorcizar!
Por exemplo, e se hoje em vez de ir trabalhar fosse mesmo ver o mar de cara a cara e não só da estrada, à distância? E depois quando quase me decido vem toda a tralha da responsabilidade e dos deveres profissionais. E se pegasse no carro e fosse dar um beijo às minhas filhas que estão longe? E a seguir a este pensamento vem toda a tralha do dinheiro que isso vai custar, e de como é preferível ir com mais tempo para usufruir mais da companhia delas. Por isso o meu sonho recuperado hoje é voltar a ser menina pequena, subir para o colo da avó e fazer de conta que tudo é como deveria ser.
Há cerca de 40 anos atrás encontrei uma menina reguila, de cabelos longos castanho-escuros, olhos enormes e pestanas esguias de veludo preto...
Uma menina que com 5 anos já sabia ler do jornal enganando a avó analfabeta que pensava que ela inventava histórias de sua própria cabeça. Uma menina que passava a vida a esconder-se debaixo dos móveis pregando grandes sustos à mãe. Uma menina que adorava andar de bicicleta e queria ser fada para ajudar os meninos pobres a serem ricos, e os meninos feios a arranjarem muitos amigos. Mais tarde a menina cresceu e eu apaixonei-me por ela. Não posso voltar a ser essa menina, e o meu sonho é impossível, porque sei demais, vivi muito e não posso ignorar as coisas. Mas, amanhã e por um dia só voltarei ao colo da minha avó nos braços do meu marido, na vozes doces das minhas filhas, nos bem-me-quer dos meus pais, e na inocência incondicional da dependência de Tché, o cachorrinho. E então de novo no colo da minha avó, irei fechar os olhos e desejar um feliz aniversário para mim, mulher que amo e que nada mais deseja senão amar e ser amada como se não houvesse amanhã e a vida fosse sempre bela até aos confins dos tempos.
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