Friday, November 11, 2011

ON FRIDAY'S CHRONICS - THE BEAR THAT COULDN'T TAKE ITS WINTER SLEEP





Nestes dias gostava de ser um urso. Aliás, na maior parte dos dias de inverno julgo ser um urso que nasceu com o defeito de não conseguir hibernar. Como certa pessoas que nascem sem o dedo grande do pé e ainda assim se conseguem equilibrar, também eu, sendo urso e não hibernando, consigo ir vivendo, criando raízes e espalhando sentimentos.

Não entendo a extrema solidão das criaturas amargas que passam diante de mim como se todos e cada um, só por existirem fossem seus inimigos. Por isso finjo que sou um urso, cabeça pendente sobre a sua própria barriga, desligado, só porque lhe apetece nestes dias frios e de chuva repetitiva. Ouço ao longe conversas cheias de nada, ideias feitas que vagueiam de trotineta de cérebro em cérebro, vidas pequeninas que se repetem em vidas ainda mais pequeninas, os sonhos esfolados como canecas de asa quebrada em casas dos velhos, os sonhos líquidos servidos numa chávena escaqueirada que ainda esquentam os pés, tudo isso são sons longínquos que não quero trazer para o meu sono de urso.

O melhor de hibernar é podermos livrar-nos das caras fechadas e cegas nas janelas dos autocarros, do perfume azedo adocicado dos elevadores vazios, da correria desenfreada dos guarda-chuvas em final de dia como se a chuva viesse detrás e não de cima, como se as pessoas fugissem em vez de caminharem ou tivessem um compromisso inadiável com a casa vazia e gélida. Nunca entenderei porque correm, essa pressa em preparar o tabuleiro triste do jantar, o queixo que descaí para o prato, o olhar mortiço que se cola ao televisor a debitar insanidades, e os dedos, viciosamente, se entretêm no zapping a autopsiar inteligências. Não há conversas. Acerca de quê? Empanturram-se de bolachas sentados no sofá, enquanto deixam o serão deserto cheio de silêncios interiores.


Nasci urso com defeito e como tal deveria poder ser trocado no hipermercado de brinquedos mais próximo:

- Olhe, desculpe, este boneco tem defeito! Não consegue hibernar.

As pessoas deslizam nos corredores empurrando carrinhos cheios de brinquedos até ao tecto. As crianças birrentas ensaiam sem parar essa vida pequenina, imitando aos gritos, já com uma precisão formal do caraças, os desejos minúsculos dos pais. A felicidade hoje é esse júbilo indizível de encher as casas com o último modelo de lixo tecnologicamente avançado. Fabricam-se brinquedos que fazem tudo e servem para tudo menos para brincar, enquanto transformamos objectos úteis, como telemóveis, em brinquedos. O que está certo se atendermos ao facto de que passámos a ser crianças toda a vida, excepto na infância, onde somos pequenos adultos mal-educados.

- Infelizmente, já não é possível trocarmos o urso, a garantia expirou.

Mete-me medo a inextinguível avidez das pessoas nos hipermercados, o olhar embaciado e os gestos semânticos de inquietação na procura da Fast Happiness na prateleira mais próxima.


Resigno-me ao facto de ter a garantia expirada. Detesto a patetice de ser um urso sem a faculdade de hibernar. O melhor é esconder o facto de ser um urso para não ter de suportar a pena dos outros ursos. Disfarço-me de pessoa, não tem importância nenhuma. Provavelmente, ninguém vai reparar. Subo para a prateleira de cima e molho com cuspo a franja para assentar melhor. Fico à espera de um final feliz. Estico o dedo mindinho e enfio-o nos olhos da criança birrenta que desata a chorar de verdade, num frémito de bochecas mimadas.

- Maaaãe aquela senhora meteu-me o dedo no olho!

- Que disparate filho, és parvo, não é uma senhora é um urso! Onde já se viu teres medo de um urso tão simpático!

Quando o hipermercado fechou pude então hibernar descansada. Aguardei, assim, com impaciência gulosa a próxima primavera suculenta.


Paula Lamares


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