Sexta-feira, 13 e outras não-estórias.
Por vezes apetece-me farejar as raízes, mais para esquentar
a memória do que para passar o testemunho. Então vou lá atrás ter com a minha
avó Maria Antónia a quem devo muito do que sou e a ternura inteira que tenho
sobre o mundo. Lembro, por exemplo, o temor de minhas tias ante o meu vício
pela leitura. Desde os cinco anos devorava tudo o que apanhava, desde a “Crónica
Feminina” da minha mãe, ao “Diário Popular” do meu pai e todos os livros que
conseguia emprestados das mais diversas fontes disponíveis, incluindo o sótão da
minha vizinha Francisca que tinha duas filhas já crescidas. Ficavam preocupadíssimas,
as tias, quando me viam passar os dias a juntar letras e quando comecei a
escrever, o receio fundado de que me tornasse um bicho estranho era motivo de
troca de olhares aflitos. A minha avó ria-se e tratava-me como uma pequena
futura escritora, mas, atenta à realidade aconselhava-me “ As letras não dão de
comer a não ser as da massa na canja. Tens que estudar para ser professora.”
Esclareça-se que ser professora, na cabeça da minha avó analfabeta, era o topo
do estatuto a que uma mulher podia ascender. Grandes esperanças, portanto, como
diria Charles Dickens, por quem tive uma pancada aos dez anos de idade.
Cresci, assim, com este vício que sempre se sobrepôs a tudo
o resto. Apesar de ter encetado outros caminhos muito distantes das letras e
dos romances que me faziam suspirar por drama e finais felizes. Evitei, assim,
grandes escândalos para a família e nunca me tornei uma daquelas escritoras
neuróticas e bipolares, génios incompreendidos sempre à beira do suicídio e do
isolamento em “campânulas de vidro”. Em vez disso, portei-me bem durante uns
tempos depois, cansei-me e fui viver.
Nunca deixei que a vida esperasse por mim. Sempre me meteu
impressão aquelas vidas poisadas numa esquina qualquer, a fazerem de menina
grande e triste, dispostas a vender o seu último sorriso a quem der mais. A
vida tem que ser algo nobre e humilde, ladeada de solavancos e imprevistos,
honesta como carro velho que orgulhoso sobe a colina iludindo a ferrugem. Sempre
me afastei dos momentos em que nunca é o momento, se o que temos é o momento em
que a dor se sente, a alegria irrompe, o prazer explode, o instante antes do
beijo. O tempo não tem vinda, para isso existem os caminhos.
Comecei tarde a saborear a vida como se fosse uma maçã. A
minha avó bebia-a todos os dias com o café “ Poupo no açúcar, já me basta a vida”.
Não percebi logo que a minha avó falava ao contrário, como quem começa a ler um
livro pelo fim. Para, afinal, lhe vir a herdar o jeito de descrever as coisas
do avesso. Tornar a ironia rainha e o riso a sua burguesia.
Obrigado avó Maria Antónia, sobretudo, porque adoravas os
dias 13 e as sextas-feiras com braseira e cansaço bom.
Paula Lamares
Fev/2015
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