Wednesday, February 4, 2015

INSPIRATION: A LESSON OF LIFE




A minha educação na escola primária foi terrível. Aos seis anos entrei para a escola da professora Laurinda, uma senhora de quarentas, natural de uma aldeia no distrito da Guarda. Falava esquisito, com uma profusão de iiiis e rrrrrs que muitos anos mais tarde vim a identificar como pronúncia do norte. A dificuldade eram os ditados em que a senhora dizia “bino” em vez de vinho e o pessoal ainda verde nestas coisas da linguagem escrita ia atrás do que ouvia e estava literalmente feito. Eram duas reguadas em casa mão por cada erro cometido que se traduzia em mãos quase em sangue em muitos putos que tinham o ouvido mais afinado e escreviam tal qual a professora Laurinda pronunciava.

A profª Dona Laurinda, como fazia questão de ser chamada, tinha umas bochechas encarnadas sob uma pele branquíssima e uns olhos pequeninos de redondos que saiam das órbitas em delírio a cada estalar da madeira na pele delicada das mãos dos infantes. Recordei durante muitas noites de pavor o som oco da régua e os dedos da professora a esmagar os dedos esguios da miudagem com uma firmeza superior ao necessário. Aquilo era um massacre autêntico de uma sádica selvajaria.

 Com ar afanado de catequista, caminhava a Profª Laurinda pelos corredores labirínticos do edifício antigo da escola com as chaves a tilintar a cada passada. Os miúdos cagavam-se de medo cada vez que ouviam o som característicos do tilintar do metal contra metal e ficavam num silêncio absoluto de olhos postos nos próprios sapatos. Até que ela passava e todos desatávamos a rir com um nervoso miudinho que em alguns se prolongaria pela idade adulta. Não se podia correr no recreio, nem gritar, nem fazer nada daquilo que é suposto fazer-se na infância.

Essa repressão que durava das 8h às 13h gerava comportamentos absolutamente insanos em alguns de nós.  Assim que tocava a saída, como touros largados do curral, os putos desatavam a correr, a brigar uns com os outros e a gritar que nem loucos. Fazíamos grandes asneiras ingénuas no tempo que decorria da escola a casa: tocávamos a todas as campainhas das portas para depois fugirmos desenfreadamente, dávamos pontapés nos gordos a roubar-lhes as mochilas espalhando os cadernos e os livros pelas ruas, os gaiatos com fisgas acertavam nas pernas das raparigas de bata branca e saias curtas e demais atos de rebeldia de feras reprimidas durante horas.

Um dia a coisa tinha que se dar. Entrei na 2ª classe com distinção mas tinha a Professora Laurinda atravessada como uma espinha na garganta. Por natureza dava-me para ficar sempre do lado dos mais fracos e ineptos. Fazia-o por instinto e não por qualquer sentido particular de justiça. Não conseguia ser alheia aos horrores por que passavam muitos dos meus colegas que chegavam a adoecer mesmo para não virem à escola. Passei todas as férias de verão a delinear uma estratégia para ser eu desta vez a dar uma lição à sádica da professora. Nesse tempo as férias duravam 3 longos meses pelo que tive muito tempo para me preparar.

Sempre tive um ótimo ouvido e conseguia imitar o que quer que fosse, sobretudo vozes e … pronuncias. Não me foi pois difícil apanhar o sotaque beirão. A pretexto de uma experiência qualquer pedi à professora para gravar umas aulas de português numa cassete de fita que era a única coisa que havia para gravar nesse tempo. Como era muito boa aluna e sempre cheia de ideias a professora concordou sem desconfiar de nada. Escusado será dizer que passei o verão todo a treinar o sotaque beirão.

Chegou o dia da leitura da composição que tínhamos feito durante as férias. Ofereci-me logo para ler o que tinha previamente ensaiado com a devida pronúncia. A professora lançou um sorriso seco, apreciando o meu ato voluntário de masoquismo. Acrescento que tinha realmente jeito para ler e uma boa voz nítida e de tom alto. Subi ao estrado em frente do quadro e virada para a classe comecei:

O Karu do mei irremão avariou na istrada. Ele tinha saído muito sedu (cedo) de Kaja (casa) e ficou muito aborrecido. O abô (avô) tinha-lhe pedido para ele levar bino (vinho) e cerbeja da taverna. O meu irremão rodou a tchave e nada aconteceu. Estávamos perto do conbeto e fomos beber auga à fonte ao pé de um carbalho ainda piquenino.” (Resta acrescentar que consegui fazer quele vibração da garganta típica da pronuncia beirã).

Parei para respirar e entreolhar a professora Laurinda na tentativa de avaliar os riscos que corria e se tinha que largar a fugir pela janela caso fosse necessário para proteção da minha vida. A minha pausa foi o pretexto certo para que os risos contidos dos meus colegas rompessem hilariantes pela sala de aula. Não havia ameaça ou reguada que parasse aquela incontinência de gargalhadas puras e duras. Meses e meses de contenção, de emoções reprimidas, de ralhetes e castigos injustos, de rude seriedade imposta por medo, de dor e raiva em fatias de ódio pequenino contra o despotismo da educadora, ali anuladas pela minha voz plena de sotaque beirão. Batiam-se os pés, atiravam-se canetas e folhas ao ar, uma autêntica rebelião, o caos instalado na inocência de ainda ignorarem o grau de malvadez de que são capazes os crescidos.

Olhei a medo para a D. Laurinda que apanhada de surpresa, ainda não recuperada, tinha as bochechas a pegar fogo. Não esperei mais, corri e corri e corri pelos corredores, pelo pátio, saltei o portão. Fugi. Choviam rios. Encharcada cheguei a casa da minha avó. Corri para os braços dela. Desatei a chorar e a rir ao mesmo tempo.

- Oh! Avó devias ter visto as bochechas da professora Laurinda, estavam em brasa. Ela fumegava tanto que se abrisse a boca cuspiria fogo.

À luz de agora até pode parecer que esta foi uma partida inocente e minúscula face ao que aquela professora nos fazia passar. Mas, quando se tem sete anos e se desafia um professor tão temido que nos punha a tremer que nem varas verdes só de olhar para nós e nos chamar pelo nome, isto foi uma coisa gigantesca, com algo de super-herói inconsciente no meio.

Não sei se foi a humilhação que a fez cair do pedestal, se ficou realmente doente, um facto é que a professora meteu baixa médica a seguir a essa manhã fatídica e não mais apareceu à escola. Ninguém sofreu represálias e eu compreendi pela primeira vez que os mais temíveis e cruéis dos seres são pessoas frágeis que não suportam o confronto e a humilhação pelos que consideram fracos e desprezíveis. Ninguém é o que parece foi a minha lição de vida.              

No comments:

Post a Comment